quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Sobre uma boneca tagarela e um certo avô socrático


Sobre uma boneca tagarela e um certo avô socrático

Eu no colo do meu avô Denizarth, festa de dois anos!  Na esquerda, meu pai Manoel e minha mãe Denize.
Não foi uma infância rica e cheia de brinquedos. O espírito protestante que reinava para dissimular a avarenta poupança paterna e a realidade material dos anos sessenta fazia com que as brincadeiras fossem na rua, com os piques, com as rifas que arrecadavam dinheiro para lanches coletivos e com os álbuns de figurinhas premiados.  Os objetos, ou brinquedos, eram quase eventos. Foi assim com um certo álbum de figurinhas que ao final de páginas exclusivas, se completadas, um prêmio era concedido. 


Não é preciso fechar os olhos para lembrar quando o já velho avô Denizarth chegou em casa com a figurinha que faltava na mão. Uma alegria! No dia seguinte, de ônibus até o centro da cidade para a busca da recompensa – a boneca Tagarela, enorme perto do corpo franzino da menina de cabelos escorridos e olhar curioso.  A boneca devia medir cerca de sessenta centímetros, tinha olhos verdes vitrificados e cabelos lisos castanhos claros. Não, o site intitulado “Brinquedos Raros” descreve: boneca, fabricação 1965, 50 cm, fábrica Estrela. Parecia maior. Parecia humana porque falava quando era acionado um cordão que ficava nas costas da boneca. Mamãe era pouco. A boneca fazia perguntas! 


Do avô também vinha a lembrança das barracas feitas de colchas e cobertores, de lençóis,  montadas na sala, entre as poltronas verdes. Dentro da caverna tudo refletia perfeito com a ajuda do pó de pirimpimpim, mesmo com a perversão dos três porquinhos e algumas histórias de quase terror que envolviam, quase sempre, personagens femininos com cabelos cortados à moda francesinha: era meia noite! Dentro da caverna era possível sonhar e cantarolar sem medo a música feita por ele: "Eu sou a netinha pequena, eu sou a netinha Monique, agora eu sou pequenina, mas vou ser uma moça elegante e dengosa e bem chique. Enquanto eu não faço sucesso, enquanto eu não causo furor, eu não me incomodo que fique o amor da Monique, com o velho borocochô que é seu avô!" Quanto amor, quantas e tantas histórias, inventadas, detalhadas nos detalhes até cansar os olhos de acordar e ir dormir. 


Este avô protetor tinha, ainda, a mania de colher jacas e andar em círculos, declamando poemas ou tentando resolver problemas de matemática. Eu o acompanhava, como num balé, em ambas as tarefas. Professor era esse avô, que soube se fazer eterno nos versos e no sangue tagarelo que corre por entre minhas veias, por entre minhas letras, por entre minhas circulares perguntas. Todo o ano, todo o semestre, há mais de 20 anos, desde sempre, o ato de ensinar ou o ato de contar histórias, verdadeiras, inventadas, reveladas, enfrentadas, revoltadas, apaixonadas é acionado em mim como se naquele cordão da antiga boneca. O prêmio – o direito de sonhar.  O presente – o eterno vir-a-ser. Obrigado meu vô professor Denizarth Adacto Pereira de Mello. Quando eu crescer quero ser igual a você. E tudo isso me fez lembrar uma dessas frases que circulam hoje na rede: "O mundo muda com teu exemplo e não com a tua opinião".

#moniquefranco, 10 de abril de 2013.

Boneca Tagarela, anos 60.
Fui criada pelo avô que se foi rápido mas me deixou suas letras!

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