Sobre Blue
Jasmine
ou dos encontros comigo
Foi num dia
chuvoso, em plena segunda-feira, em que provamos um caldo de couve-flor com
gorgonzola de uma barraquinha de rua, depois tapioca de banana com canela e um
tanto de leite condensado. Isso depois de ver o último filme do Woody Allen, Blue
Jasmine, que foi lançado em New York e San Francisco, em julho e, no Brasil, no
último 15 de novembro. As cenas da simplicidade da deliciosa comida servida
ali, na saída do metrô, com o barulho dos trens cosmopolitas compondo o
tempero, muito provavelmente, também, a poluição oriunda deles, exalada por
aqueles grandes respiradores na calçada, se encaixavam perfeitamente com o
cenário ora luxuoso, ora periférico do filme, ora nostálgico, ora de crua
realidade. Mas o que valia mesmo era estar ali, na vida real e simplesmente
feliz, simplesmente. E tudo voltava ao curso normal depois daquela maratona de
trabalho e vida, apesar de que há muito o curso havia mudado, drasticamente,
com a entrada em cena daquele ser especial, entrada ou atravessamento, nos
sonhos, nos planos, no dia-a-dia.
Mudara, tudo mudara tanto que talvez tenha aprendido ou apreendido de
vez que uma das facetas do amor é a capacidade que tem de transformar. Mudar
rumos e provocar enfrentamentos, sim porque estes estavam sempre presentes, posto
que a vida então vivida era real, sem ou com pouquíssimos subterfúgios, muito
diferente da virtualidade que reina nas relações fluidas ou fortuitas que
majoritariamente se colocam em presença na atualidade. Continua a valer o que
disse o filósofo. Amor não é o que completa e sim o que
transforma, movimenta. Mas para isso, este
precisa ser real, não idealizado. Parece piegas falar que amar é gostar do
outro como ele é e não como gostaríamos que o outro fosse. Parece, porque a
virtualidade projetada, idealizada numa euforia perpétua, como nos sinaliza
Pascoal Bruckner, tem cada vez mais desenhado o exército de autômatos que hoje
configura a grande maioria. E como são
perfeitos e felizes! Buscar na massa a multidão, fazer valer na rede a
biopolítica, dos corpos, das lutas, é tarefa de mão dupla, retroalimentada pelo
uso crítico desse novo território virtual. Difícil tarefa facilitada quando é
possível ler o insurgente, enxergar suas ações, colorir seus retratos. Mesmo
papel conferido à sétima arte ou a todas as artes. Dar visibilidade ao insólito
e ao comum de todos nós. A maquiagem do cinema não é fake, transpira, sim, a
fantasia de um real imaginado materializado, palpável, visível. Por isso dói,
incomoda, mistura e borra. São as lágrimas.
E o filme. Woody
Allen é esse crítico de si e da sociedade em que vive. Zoa de si, é personagem
autobiográfico sempre, sempre. Em cada personagem. Ali
está ele, bastante ciente disso, característica nem sempre assumida por aqueles
que criam, o que quer que seja, como se a arte fosse uma exterioridade. Não é,
nunca foi. É retorno, sabemos. Em síntese, o filme traz a esquizofrenia
daqueles que optaram por viver na fantasia seja da luxúria ou da traição de si
mesmos. Sim, grosso modo, quem trai, trai a si, mente para si e, consequentemente,
vive uma falsa realidade, uma projeção do real. Uns enlouquecem antes de
morrer, outros morrem vivendo essa ficção. Sim, por vezes adoramos imaginar
outras vidas, possíveis ou impossíveis, mas outras. Sim, muitas vezes adoramos
projetar cenários, mas a vida chama ao chão duro de andar e é preciso encontrar
outras válvulas de escape menos sintomáticas para não-ser só um o tempo todo,
sem se perder a si mesmo. Sim, talvez envelhecer seja reconhecer-se sem
necessidade de espelho. Envelhecer talvez seja nascer
dentro de si aos poucos e cada vez mais, de uma espantosa paz que esse
reconhecimento traz e faz valer a pena cada fio branco, cada ruga ou cada perda
do viço aparente que recobre a pele ainda não tão vivida.
Blue Jasmine é
isso, o desnude da loucura daqueles que optaram por um mundo de aparências, de
simulacros, seja nas relações sociais, seja na constante e aparentemente
necessária atualização de representações de uma histérica felicidade registrada
em cliques, drinques. O enredo acaba, assim, servindo como alerta moral.
Mas Woody Allen
não está só na escolha de (re)contar essa história. Nem a esquizofrenia que
passeia por entre as cenas está imune à realidade
de seus interlocutores. Ele bebe de Tennesse Willians, escritor e poeta
estadunidense do século XX, que, segundo consta, depois de Shakespeare, foi o
dramaturgo mais adaptado para além das letras. O escritor fora apaixonado por
sua irmã, acometida pela doença, marcando assim seus textos de drástica
densidade psicológica. O famoso livro “A
streatcar named desire”, traduzido no Brasil para “Um bonde chamado desejo”,
foi peça na Broadway, em 1947 e filmado em 1951,
sempre com a direção primorosa de Elia Kazan. O livro levou o prêmio americano
Pulitzer, da Universidade de Columbia, em Nova York e o filme foi indicado, na
ocasião, ao Oscar de melhor filme, direção, tendo sido premiados com a
estatueta os dois atores coadjuvantes e a atuação de Viven Leigh no papel de
Blanche Dubois, interpretado, nesta versão, de
forma magnífica, pela impecável atriz
australiana Cate Blanchet, como uma mulher rica que perde todo o dinheiro do
marido corrupto e tenta reconstruir a vida ao lado da irmã mais pobre, a
britânica Sally Hawkins, também excelente no papel. Recheado de flashbacks, recurso
utilizado pelo diretor em outras obras, o compasso do filme flui em meio aos
usuais diálogos sarcásticos e uma câmera
mais ágil, mesmo em espaços exíguos, conseguindo outro efeito: quando está
parada, foca o desamparo interior de Jasmine, reunindo drama e comédia e
trazendo um Woody Allen desesperançoso.
E não seria
possível terminar essa crônica sem citar a primorosa trilha sonora do filme que
traz Back O’Town Blues – Louis
Armstrong And The All Stars; Speakeasy Blues – King Oliver; A Good Man Is Hard To Find – Lizzie
Miles & Sharkey’s Kings of Dixieland; e Blue
Moon a canção recorrente da
personagem principal Jasmine, uma espécie de leitmotiv da sua vida na narrativa. “Blue moon”, Rodgers & Hart, e que só poderia ser na voz de
Billie Holiday e dos grandes músicos que a acompanham. Pela sonoridade, esse é
mesmo um filme de Woody Allen.
Que venham os
prêmios de um Wood Allen em forma, provocador e bem humorado, que não se furta
em desnudar a natureza humana e suas angústias.
De resto são só
palavras. Darão algum sentido as palavras ao que nos atravessa se o momento é
sempre o da travessia? Como historiadora pergunto sobre as fontes, diretas e/ou
indiretas, primárias ou não, que balizam nosso contar sobre o tempo, que dão
suporte às memórias coletivas e individuais. O que resta a contar quando são os
egos inflados que ocupam o lugar e sobra pouco da duração, de cada evento, de
cada nervo acionado para pensar e agir num determinado instante?
Que venham as
cenas. A encenação já é o que reina.
Que a história das nossas vidas tenha sempre, de fundo, uma linda canção. Inté!
# moniquefranco, cinemando com a música
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