sábado, 6 de dezembro de 2014

Entre geladeiras e biscoitos, cheios e vazios ou... o sonho é o não-do-cheio



Entre geladeiras e biscoitos, cheios e vazios ou... 
o sonho é o não-do-cheio

Por vezes a cabeça voa. É quando guardamos o biscoito na geladeira, por exemplo. Dois lados. Primeiro a dificuldade de achar o tal pacote de biscoito, se o caso for procurá-lo, em algum momento; segundo, a surpresa de achá-lo, sobretudo, se não o estiver procurando na geladeira – o que você faz aqui? É assim também com as coisas, não todas, as actantes, ou pessoas. Surpresas nos pregam. Por que, por exemplo, agora, não me sai da cabeça algo que antes tampouco existia? Parece que alguns encontros possuem um start quase maquínico ou totalmente maquínico se formos considerar a existência de um ‘algo’ que atua, modifica a si e a quem encontra. O romantismo chamou isso de amor.  A psicanálise e a filosofia, de forma diferenciada, de pulsão. Em síntese, tratam-se de tecnologias, técnicas de si e do outro, formas de articulação de uma dada linguagem inscrita no seu tempo, a cada tempo, diferentes tintas, roupagens. E assim criamos e fixamos as pessoas, as coisas e suas util-idades, instituímos os entes, crentes que somos, e estas, estes... ganham vida própria e... causam dependência, alteradores de consciência - nossas permitidas cápsulas diárias de sobrevivência.

Minha mesa de trabalho, por exemplo, a velha escrivaninha, cravada no quarto anteriormente repleto de papéis e livros anarquicamente organizados por uma fina lógica, passa a ecoar e exigir seu uso pela casa; faz valer sua presença, o corpo sente sua ausência na altura diferente de uma nova cadeira, seu par supostamente análogo... Definitivamente a nova mesa, o novo quarto, não são novos! Não! Mas o espaço se faz como ator, representa; se faz memória. Este espaço fala, exige o retorno da mesa, o retorno do antigo e sua estabilidade perdida! Já o corpo, o eterno posto que está em cada possível homem, pequeno demais de si para guardar todos os medos, se faz doer na ausência daquilo que delimita o tamanho, possível, o lugar, que suposta-mente protege, in-forma o sentido. Foi por esse caminho que trouxe minha chipandelle, antes no pequeno escritório, para o quarto montado deixado vazio pelo filho cresc-ido. Mesmo assim a luz é diferente! Aí não tem jeito, luto, diria o quer-ido amigo distante de antes e tão pres-ente na ágora de nossas cotidianas discussões, revelações não-ditas, por vezes mal-ditas, quiçá mal-vistas! Há que se vivê-las, as perdas... de mesas e suas corporificações praticamente ‘humanas’ ou de sonhos intrinsecamente reais... Contudo aprendemos, cartesianamente, que deveríamos preenchê-las, as perdas, quando de fato elas nos preenchem com sua insistente lembrança. Então, perdas – devemos perdê-las mesmo... Aí está o novo, a possibilidade do novo, que surge possível, no sonho acordado ou dormido. Parece que só há sonho no vazio; no vazio do não-cheio de significados para que cada significante possa emergir; organizar o caos que retorna insiste-mente posto que funda a verdade de cada um, sem ser nada além de puro trânsito, pura espera, diria o mestre... O sonho é o não-do-cheio. O sonho no cheio é simulacro, repetição. É do vazio do sonho que surge o cheio da vida, este emaranhado de e-ventos que nos inter-pelam, ainda que fiquemos trancados em um quarto escuro de nós mesmos, com nossos objetos táteis, estáveis e conhecidos. Bengalas – nos contou Althusser. De cegos de tanto não-ver. Todavia, estes táteis, actantes, corpóreos, acabam por nos encher de um vazio que o cheio/cheiro do conhecido traz. Por que o velho perdeu o perfume? Porque não é como a flor que renasce a cada estação, quando se faz eterna e quando o que há é apenas o não de cada diferente estação... É isso que o cheio faz. Transborda, na loucura ou no medo da perda do cheio-vazio que informa a estabilidade diária. O vazio traz o retorno do novo e o novo é maldito quando o cheio se instala. É do vazio que surge o exposto assim, como se rascunhado, previamente indefinido, em partes desiguais, não coesas, instáveis, improváveis e que desa-fiam cada um de nós e nossas histórias cruz-adas. É assim que o biscoito vai para a geladeira e reina, absoluto, quando expõe s-eu inadequado pertencimento. O que você faz aqui? O que você faz aqui no meu sonho? Está cheio o seu definido lugar? E qual o vazio há de criar? Vaza, vaza. É melhor vaz-ar. 

E é sempre bom lembrar, diria o poeta e sua canção, que um copo vazio, está cheio de ar. Uma vez escrevi um poema cujas estrofes começavam e terminavam assim: Tirei o vazio das velas/da luz que queimou em vão/do vão que deixou suspenso/o caminho do desejo /percorrido desde então/Tirei o vazio das velas/da luz que queimou em vão/parafina fina/gota que ficou e queimou /a palma da mão.

#monique, entre o cheio e o vazio

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