Entre
geladeiras e biscoitos, cheios e vazios ou...
o sonho é o não-do-cheio
Por vezes a
cabeça voa. É quando guardamos o biscoito na geladeira, por exemplo. Dois
lados. Primeiro a dificuldade de achar o tal pacote de biscoito, se o caso for
procurá-lo, em algum momento; segundo, a surpresa de achá-lo, sobretudo, se não
o estiver procurando na geladeira – o que você faz aqui? É assim também com as
coisas, não todas, as actantes, ou pessoas. Surpresas nos pregam. Por que, por
exemplo, agora, não me sai da cabeça algo que antes tampouco existia? Parece
que alguns encontros possuem um start quase maquínico ou totalmente maquínico
se formos considerar a existência de um ‘algo’ que atua, modifica a si e a quem
encontra. O romantismo chamou isso de amor. A psicanálise e a filosofia, de
forma diferenciada, de pulsão. Em síntese, tratam-se de tecnologias, técnicas
de si e do outro, formas de articulação de uma dada linguagem inscrita no seu
tempo, a cada tempo, diferentes tintas, roupagens. E assim criamos e fixamos as
pessoas, as coisas e suas util-idades, instituímos os entes, crentes que somos,
e estas, estes... ganham vida própria e... causam dependência, alteradores de
consciência - nossas permitidas cápsulas diárias de sobrevivência.
Minha mesa de
trabalho, por exemplo, a velha escrivaninha, cravada no quarto anteriormente
repleto de papéis e livros anarquicamente organizados por uma fina lógica,
passa a ecoar e exigir seu uso pela casa; faz valer sua presença, o corpo sente
sua ausência na altura diferente de uma nova cadeira, seu par supostamente
análogo... Definitivamente a nova mesa, o novo quarto, não são novos! Não! Mas
o espaço se faz como ator, representa; se faz memória. Este espaço fala, exige
o retorno da mesa, o retorno do antigo e sua estabilidade perdida! Já o corpo,
o eterno posto que está em cada possível homem, pequeno demais de si para
guardar todos os medos, se faz doer na ausência daquilo que delimita o tamanho,
possível, o lugar, que suposta-mente protege, in-forma o sentido. Foi por esse
caminho que trouxe minha chipandelle,
antes no pequeno escritório, para o quarto montado deixado vazio pelo filho
cresc-ido. Mesmo assim a luz é diferente! Aí não tem jeito, luto, diria o
quer-ido amigo distante de antes e tão pres-ente na ágora de nossas cotidianas
discussões, revelações não-ditas, por vezes mal-ditas, quiçá mal-vistas! Há que
se vivê-las, as perdas... de mesas e suas corporificações praticamente
‘humanas’ ou de sonhos intrinsecamente reais... Contudo aprendemos,
cartesianamente, que deveríamos preenchê-las, as perdas, quando de fato elas
nos preenchem com sua insistente lembrança. Então, perdas – devemos perdê-las
mesmo... Aí está o novo, a possibilidade do novo, que surge possível, no sonho
acordado ou dormido. Parece que só há sonho no vazio; no vazio do não-cheio de
significados para que cada significante possa emergir; organizar o caos que
retorna insiste-mente posto que funda a verdade de cada um, sem ser nada além
de puro trânsito, pura espera, diria o mestre... O sonho é o não-do-cheio. O
sonho no cheio é simulacro, repetição. É do vazio do sonho que surge o cheio da
vida, este emaranhado de e-ventos que nos inter-pelam, ainda que fiquemos
trancados em um quarto escuro de nós mesmos, com nossos objetos táteis, estáveis
e conhecidos. Bengalas – nos contou Althusser. De cegos de tanto não-ver.
Todavia, estes táteis, actantes, corpóreos, acabam por nos encher de um vazio
que o cheio/cheiro do conhecido traz. Por que o velho perdeu o perfume? Porque
não é como a flor que renasce a cada estação, quando se faz eterna e quando o
que há é apenas o não de cada diferente estação... É isso que o cheio faz.
Transborda, na loucura ou no medo da perda do cheio-vazio que informa a
estabilidade diária. O vazio traz o retorno do novo e o novo é maldito quando o
cheio se instala. É do vazio que surge o exposto assim, como se rascunhado,
previamente indefinido, em partes desiguais, não coesas, instáveis, improváveis
e que desa-fiam cada um de nós e nossas histórias cruz-adas. É assim que o
biscoito vai para a geladeira e reina, absoluto, quando expõe s-eu inadequado
pertencimento. O que você faz aqui? O que você faz aqui no meu sonho? Está
cheio o seu definido lugar? E qual o vazio há de criar? Vaza, vaza. É melhor
vaz-ar.
E é sempre bom lembrar, diria o poeta e sua canção, que um copo vazio,
está cheio de ar. Uma vez escrevi um poema cujas estrofes começavam e
terminavam assim: Tirei o vazio das velas/da luz que queimou em vão/do vão que
deixou suspenso/o caminho do desejo /percorrido desde então/Tirei o vazio das
velas/da luz que queimou em vão/parafina fina/gota que ficou e queimou /a palma
da mão.
#monique, entre
o cheio e o vazio
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