A
história vai contar, porque toda história é memória e isso é uma conquista, que
no dia 18 de março de 2016, o ex-presidente Lula tomou posse da Casa Civil do
governo Dilma Rousseff, no Brasil. Eu estava, com o meu adorável cão, esperando
uma consulta numa veterinária em Laranjeiras, bairro considerado reduto de
intelectuais no Rio de Janeiro. Na TV a Globo ligada transmitia a posse com
comentaristas tecendo juízos de valor conservadores e golpistas. Das dez
pessoas que lá estavam, a maioria concordava com a Globo. Um rapaz que
entregava marmita a um funcionário e a própria veterinária foram meu consolo.
As lágrimas vieram vendo e ouvindo a posse tão dramática, quase incrédula do
que a Globo comentava. Mais tarde dois episódio parecidos se sucederam. Num
supermercado da Zona Sul enquanto aguardava o pedido, as televisões espalhadas
transmitam a Globo e incitava a todos a dizer – ladrão. Já no cabeleireiro mais
simples do bairro, pintando cabelo, o conjunto de clientes e mesmo
funcionários, a maioria oriunda das comunidades do entorno, ouviam as mesmas
transmissões golpistas e aderiam de forma histérica sem saber que perderiam, de
fato, a voz. Nojento, triste, revoltante.
O
governo está ameaçado pelo clã dos Marinhos e seus vassalos, incluindo Moro, o
judiciário do Paraná, o Ministério Público paulista e pela Polícia Federal, sem
falar na Folha, na Record e os declaradamente fascistas que querem a cura gay,
entre outros retrocessos impensáveis num passado recente. Está sendo ameaçado pela FIESP, que distribui filé mignon aos
manifestantes aos servos, pela FIRJAN. Umberto Eco, que nos deixou faz pouco tempo,
defendia a tese de que estaríamos num “retorno” das estruturas de poder
medievais e, em um de seus últimos ensaios, denunciou o papel esmagador da
mídia, sobretudo da Internet. Em todo Brasil a elite se articula e leva consigo
hordas de população que não imagina seu futuro. Apenas tem ódio, finamente
inserido em seus corações, cotidianamente. Massacre psicológico e econômico. Para
além da ampliação das privatizações, concessões, até a CLT está ameaçada de retrocesso. Mas o
povo tem ódio, bate panela. Não caiu a ficha. Parece mesmo apenas faltar as
prisões obscuras e a censura deslavada já que os grampos já foram, na prática,
autorizados na tosca justificativa de um juiz de primeiro grau. Inaceitável
para qualquer Estado de direito Democrático.
Já
no fim do dia, numa conversa com uma aluna querida e amiga, comentei que meu
filho Miguel, com seis anos, havia passado no chamado “ Vestibulinho” do Colégio
Teresiano, na zona sul do Rio de Janeiro, com uma redação intitulada “ Os Vikings
não eram bárbaros”. Isso porque, havíamos visitado um museu na Dinamarca, onde
mora sua madrinha. Eu o presenteie, de antemão, à época, com um pequeno livro
homônimo que descreve a entrada desses povos num momento de decadência do
Império Romano do Ocidente, em busca de um lugar mais quente e possível de
sobreviver. De índole pacífica, na maioria agricultores ou caçadores, faziam
uso de um chá para aquecer e dar força. Por isso aquelas representações que
vemos daqueles amedrontadores olhos esbugalhados e, supostamente contraditoriamente,
nos deliciamos com a dupla Obelix e Asterix. Ficaram taxados de bárbaros pela
história dos vencedores e assim foram narrados por séculos.
A essa vivência de meu filho Bourdieu intitulou
de “capital cultural e capital social.” Essa lembrança veio me afetar, ao ler a
mensagem pública dele, Miguel, na rede dizendo - “mãe, o Lula que ganhou meu
voto no passado, que você votou, não existe mais”. Como ele muitos jovens,
muitos brasileiros têm sido bombardeados com avalanches de versões de fatos que
envolvem o Partido dos Trabalhadores e as figuras do ex e da atual presidenta -
sim aqui ela é presidenta porque é mulher e líder de um país como Brasil e isso
é muito relevante no contexto das conquistas feministas.
Não.
Não existe apenas dois lados nessa história. Colocar o PT como culpado, para lá
de não incriminá-lo, é excelente estratégia para facções extremamente
conservadoras e moralistas que não desejam a mudança no país e sim sua total
subordinação ao capital financeiro e ao mercado e avançam com suas pautas
visando a desconstituição de direitos e a criminalização dos movimentos
sociais. Esses grupos não desejam o bem
do mundo. Vão construir e destruir o que quiserem – desde romances até nossos
passarinhos, peixes, flores. Nossa humanidade. Além de Maricá, Grumari, talvez
queiram mesmo lotear as estrelas. Sabemos que a chamada direita, avança no
mundo todo e por ela não existira essa crônica, não existiria o prosaico, o bem
comum, só a contabilidade dos rendimentos dos investimentos. Colocar o PT como
culpado e o impeachment como solução parece um “deja vu” atualizado. Já vimos esse filme meu filho! Você e toda uma
geração não era nascida mas estudou. E o que faria o Temer? Temer ou não temer
– eis a questão. Mudar o Ministério? E se o Cunha conseguir o que quer e
antecipar às eleições? Em quem o povo brasileiro votaria? Com base em que? Na
corrupção? De quem? Cadê a a mulher do Cunha com aquela assustadora plástica? O
olho dela nunca fecha. Talvez entre eles seja preciso estar sempre de olhos bem
abertos.
Assim
como na Europa fascista da década de 30 do século XX, as massas estão sendo mobilizadas ao ódio e à adesão à ideia de que
o problema é o PT, um inimigo único, ou que o problema é o Brasil e seus
brasileiros. Nossa herança colonizada ainda é ferida aberta. Nossa autoestima
baixa. Ainda temos “medo de ser feliz”. As massas estão sendo conduzidas à
aversão à pactos que sempre foram feitos, de forma muito mais promiscua e
obscura, mas que não poderiam ser feitos, nem de longe, pelo PT para se manter
no poder. Cobram dele quase um purismo, me parece, e ele perdeu a virgindade. Doeu.
Os mais inteligentes comparam Lula a Macunaíma. Nunca havia comido mel e quando
comeu se lambuzou. E ainda, Lula teria um ego muito grande. Pobre ou ex-pobre
não pode gozar. Mais ou menos como Eduardo Paes que falou que Lula estava
acostumado à pobreza.
Lula
é Ministro da Casa Civil. Vai, não só, para fórum privilegiado como para dar
sustentação ao governo. Seu julgamento vai continuar e ser ainda mais rápido. Não
inventaram as regras. As cartas estão sempre à mesa no Brasil. Um suspiro e
começa o jogo. Assim é o Brasil. Moro
não é herói. A operação Lava-jato está sendo usada para atacar propositalmente
o PT em detrimento dos demais políticos de partidos e tal qual na Itália,
parece produzir, mecanismos de corrupção cada vez mais sofisticados e não
acabar com ela, aliais, nem tem essa intenção. É nítida a intervenção americana
no processo como em outro momentos já comprovados na História do Brasil. Nesse
sentido Moro é uma marionete irresponsável que está causando esse delírio
brasileiro, junto, sobretudo, com essa mídia nojenta que é o monopólio da Globo
e dos Marinhos. Não, não saímos do Coronelismo. Eu ouvi do meu compadre – você
está parecendo torcida de time de futebol, referindo-se aos intensos
compartilhamentos do golpe nas redes sociais. Sim. É preciso não ser omisso, é preciso lutar
pelo Estado de Direito. Temos poucas armas. Temos a militância já que parte do
próprio povo, não apenas a elite, repete o coro da aversão ao PT. A elite que foi às ruas no último domingo é a mesma
que desfilou na Marcha com Deus e pela liberdade no golpe de 1964. As bases praticamente
as mesmas. A tomada de poder, o golpe, é o que está em jogo.
Se
não fui capaz de ensinar ao meu filho ler a história, talvez eu tenha falhado.
Miguel nasceu em 1985, em plena abertura, mais precisamente um dia antes da
morte do presidente Tancredo Neves, um ícone, na época, da democracia e da Nova
República, e que tem, ironicamente, no seu neto, o retrato da espúria, política
e pessoal. Talvez agora adulto, morando há cinco anos por conta própria e muito
bem, brilhante e batalhador que é em prol do meio-ambiente, tenha querido
romper com as “influências”. Quero crer que existem momentos que não queremos
parecer com nossos pais. Ou eu mesmo que não soube ensinar. Sempre dispendi
mais tempo para os meus alunos do que para com ele, já me reclamou quando jovem.
Sim,
mudou. O Lula mudou e com ele a condução do partido, do PT, também mudou.
Miguel me acha romântica. Romântico era o PT das décadas de 80 e 90. Na presidência a questão da
governamentabilidade e a defesa de determinadas pautas, mais populares, podem
acabar com qualquer romance. Isso não significa defender a máxima dos fins
justificarem os meios. É estrutural em nosso país, à apropriação do público por
interesses privados, do macro ao micropoder, a partir tanto dos gestores
públicos, gerenciando cargos, políticos, quanto no indivíduo, no sujeito social. É
geral, da vaga do deficiente ao judiciário. Assim temos o voto como mercadoria, a
corrupção, o enriquecimento pessoal inescrupuloso. De fato, vimos que o PT e a
coligação, infeliz coligação necessária para a hegemonia do partido, e ainda
pequenos mas significativos avanços na construção de um Estado de Bem Estar
Social, não foi capaz, na primeira pessoa do singular, mais uma vez, ainda, de
romper com essa lógica que tem o pé, sem sombra de dúvida, na nossa longa
história escravocrata. Jamais fomos libertos. Ainda devemos à venda do patrão.
Parece eterno.
Mas
se estamos distantes do sonho, ainda distantes de um governo popular, não
podemos e não devemos nos silenciar. Nós conquistamos o Estado Democrático de
Direito e ele está sendo demolido na nossa frente. Usurpado. Um enorme
retrocesso já ocorreu. Nossa democracia é nova, muito nova. Ainda não se
consolidou e está fortemente ameaçada. Há uma sangria na já frágil base do
governo. A Comissão nomeada para analisar o pedido de impeachment é toda ré em
outros processos e totalmente desfavorável a Dilma. E ainda falam em golpe do PT.
Existe
um golpe em curso mas das elites, dos conservadores e tem levado de bandeja o
povo brasileiro, sem espaço para respirar. Um xadrez ainda impreciso que está
levando a grande maioria à bancarrota. As bancadas do PMDB e do PSDB, entre
outras, tão corruptas quanto, estão muito determinadas e agindo para manipular
o impeachment do tapetão e promover as chamadas Indiretas já, posto que a Constituição
brasileira, com sua também frágil história constitucional, prevê que, caso o
presidente e vice forem afastados depois da metade do mandato a eleição dos
novos líderes é feita por eles, apenas senadores e deputados. Nesse momento
vale a Constituição. Para isso Temer cairia junto, acusado de obstruir a
Operação Lava-Jato. A operação seria cuidadosamente engavetada, com ares de
vitoriosa.
Não
sejamos ingênuos ou oportunistas, sim porque há sempre os oportunistas. Eu
mesma conheci um que se orgulhava por ser primo distante do Aécio e tinha como
meta trabalhar em suas campanhas mas, como nunca foi lembrado, apesar de sua subserviência,
na época em que o PT surgia como força popular, capitulou. Que caiam as máscaras.
Estamos
no que muito bem caracterizou Agabem, já tão mencionado por mim em outros
escritos, em pleno Estado de Exceção, que se caracteriza por usar o direito e suas brechas para legitimar
ações fortemente autoritárias e que ferem sobremaneira a soberania do Estado de
Direito e suas duras conquistas, no caso brasileiro. Constantes violações passaram a ser parte de nosso cotidiano e caso
o golpe se instaure, vão atingir a cada um de nós e a todos aqueles e aquelas
que hoje se esquecem das lutas da nossa democracia.
Daqui
há alguns anos espero ler para os meus netos e bisnetos – Os vikings não eram
bárbaros, tampouco o Lula ladrão. Espero, ainda que o Brasil tenha saído da
linha da pobreza e do analfabetismo real ou funcional. E que nossas conquistas
não tenham sido usurpadas. Quero
continuar ensinando aos jovens a História e poder lembrar do sonho.
Não,
a luta de classes não acabou. No Brasil parece estar começando.
Não,
definitivamente, os vikings não eram bárbaros.
#moniquefranco,
num texto emocionado, escrito na madrugada, sem revisão e sem tempo agora para
a mesma. Preciso sair para passeata de hoje, 18 de março de 2016, sem medo de
ser feliz e com orgulho de ser brasileira. E a título de empiria sincrônica,
nesta madrugada, quase três da manha daqui, minha comadre da Dinamarca, sem
saber desse texto, compartilha comigo um pequeno filme sobre a cultura Viking.
É, o sonho não acabou.