Entre
permissividades
e esconderijos
Dar
peças que usa, mas não usa tanto, ou não usa mais. Também é bom dar aquelas
peças que lembram alguma coisa, e ficam ali... pronto – já não lembram mais!
Quer coisa melhor que dar aquelas roupas compradas quando se estava um tamanho
acima? Nossa, muito bom! Há, todavia, uma ponta de receio de precisar voltar a
usá-las e outra ponta de orgulho e determinação de querer livrar-se delas,
ainda que sejam bonitas ou que tenham sido caras. No que diz respeito às roupas
que você não usa mais há, mais uma vez, um sentimento ambíguo. Como usei isso
um dia, que absurdo (de curto, de decotado, de apertado, muito colorido, sóbrio
demais)! E lógico, certo saudosismo de não poder mais usar certas peças.
Alguns
preceitos básicos. Não dar peças recebidas de presente dos filhos, mesmo que
não goste tanto assim. Essas são memórias “imexíveis”, diria nosso antigo
ministro. Com noras, genros, sogras, familiares próximos em geral, o problema
já é outro. Cabe usar as peças recebidas pelo menos em alguma ocasião de modo a
demonstrar o agradecimento. A não ser que sejam absolutamente impróprias para o
uso. Acontece. Aí não tem jeito. Ou se troca na ocasião, abertamente ou não, ou
destino-doação-certa. Com o parceiro sonha-se, apenas sonha-se, que saiba
exatamente seu gosto e preferência, de cor, de marca, de estilo! E de tamanho!
Ou seja, nada de trocas ou doações, mas, contraditoriamente, estas peças acabam
sendo vulneráveis ao desaparecimento, juntamente com o respectivo.
Também
é bom pensar que as peças, quando movimentadas pelo desapego, irão, cada qual a
sua maneira, se customizar em novas vidas. É como quando se tem, em casa, um
móvel antigo. Imaginar que ele já habitou outros espaços-tempos traz certa
sensação de eternidade, ou, pelo menos, do tempo existir para além de nós. Muitas
peças guardamos, pouco uso fazemos. Eternizamos o oculto.
Com
o tempo, parece que passamos a gostar mais de bolsas e/ou sapatos. Facilita
tudo. Basta usar o básico que o par faz o resto. Compõe, diriam os
especialistas. Mudar as coisas de uma bolsa para outra bolsa constantemente é
que complica. Esquecimentos, perdas acontecem. Ninguém gosta de perder nada e
isso pode ser um problema. Por isso existem aqueles que usam sempre a mesma
bolsa ou mochila, até que fiquem velhas e surradas. É uma opção sintomática.
Para quem é favorável à mudança, mas é receoso com as perdas, hoje em dia
existe uma bolsa para colocar “as coisas da bolsa”, cheia de compartimentos.
Guarda-se tudo lá. Quando se troca de bolsa é só transferir a bolsa. Muda-se a
casca, digamos assim, fica o recheio. Esquisito. Sempre o mesmo recheio, assim,
repetido. Estranho. Tenho uma amiga que tem e diz usar. Já passei os olhos numa, em um free shop, um tanto quanto desconfiada
e... achei cara. Resolvi assim, não comprei.
Ademais essa alternativa, sem dúvida nenhuma, prática e por que não
dizer controladora, parece invalidar a própria propriedade de qualquer bolsa
(ou seja, sua “bolsidade”) que é seu conteúdo favoravelmente anárquico e, por
vezes, inesperado, para bem ou para o mal. Será que colocamos ali nossos
pertences para perdê-los e depois achá-los, aliviados? Isso porque a lógica de
colocar ali os pertences que precisamos e usamos nem sempre é pertinente.
Bolsas são como a vida – andam cheias de inutilidades – supostas seguranças e
encontros determinados. Mas achar, na vida ou na bolsa, já não é tão fácil.
Chaveiros e celulares, por exemplo, deveriam vir com imã. Temos a recém-família
de pen drives, ipods, vários tamanhos, capacidade de armazenamento. Periga toda
uma vida se perder! O problema –
onde? Já canetas, lápis, esses
dispositivos criados para perpetuar as lembranças parecem fugir dos dedos...
Tem gente que fica sempre com o celular nas mãos. Horrível isso. Deve ser
trauma de perdê-lo nas bolsas e ouvi-lo tocando, tocando... sem achar, de forma
consciente ou não. Mas é inevitável, um dia eles desaparecem de vez, das bolsas
ou das mãos...
Acho
que toda essa divagação sobre o desapego às variadas peças e seus novos
destinos, pertences achados ou perdidos, vieram a partir da recém-arrumação da
gaveta de meias, e o questionamento dela derivado de por que somem as mesmas
dos seus pares. Imaginei o que teria escrito (ou seria sentido?) caso a
arrumação fosse das calcinhas e suas prováveis perdas. Complicou, ou ficou
cheio de “plicas” como aprendi com meu estimado amigo. Mas mãos à obra. Neste
caso, mãos às cestas, porque o armário, antigo, não dispõe de gavetas e sim
prateleiras. E foi inevitável lembrar-se de um namorado que sugeria que eu não
usasse calcinha quando fosse encontrá-lo! Perdição certa! Seja pelo pedido em
si, seja pelo (im)provável, porém recomendável, encontro da calcinha com a
bolsa, pois sempre há o dia seguinte! Convém levar uma, “reserva” (ou seria
principal?). Nesse ínterim a calcinha poderia, de fato, tal como os celulares e
as chaves, as canetas e os batons, se perder. Melhor nem arriscar a perdição ou
desmarcar o encontro? De fato, calcinhas se perdem no chão, viram sementes e
delas brotam poesias, como a escrita tempos atrás, e que inicia assim: eu
guardei uma calcinha/ branca/de rendinha/toda molinha/que acabou virando
lenda/de um amor que não teve fim/a calcinha foi usada,/na verdade
descartada/numa noite de verão/corpos quentes e molhados a jogaram para o
chão... E por aí vai.
É
sempre bom guardar as calcinhas em separado – uma taxionomia das calcinhas em
ação. A separação por cor pode ser uma classificação muito banal, mas útil,
sobretudo quando se combina com o sutiã. Mas o ideal é separar (ou guardar?) as
“especiais” (porque lindas, porque novas ou porque existirão “ocasiões” para
usá-las), as mais altas, para determinados tipo de roupa, as “míninas” para
outro determinado tipo de roupa, e as do dia a dia, que apesar de serem
necessariamente lindinhas, podem ser um pouco, nem tão novas e nem tão
especiais. Tenho uma amiga que diz guardar calcinhas que nunca usa! Ficam
celibatárias de sua “calcidade”! Não!
Isso não deve ser bom. Nem para calcinha, nem para a sua não-usuária. Tenho
outra amiga que a mãe lhe ensinou a respeito de calcinhas: “Nunca use calcinhas
velhas – e se você sofrer um acidente? Está de calcinha feia, não fica bem!”
Tem sentido. Mas talvez o uso de belas calcinhas apenas por prazer pessoal
possa ser o mais favorável. Parece que dá um certo poder misturado com
serenidade.
Mas
com certeza esse uso mais corriqueiro da beleza e do cuidado de si tende a ser
edificante. Em meio a todo o processo de arrumação, me deparo com uma adorável
gata amarela, que chegou arredia e está cada vez mais dengosa, confortavelmente
instalada no cesto de calcinhas – a nova personalidade deve ter se constituído
ao longo do convívio íntimo com as mesmas e suas histórias. Não é bom animais
em armários. Sabemos. Mas para uma menina que tem na memória a criação, por
algumas semanas, de um gatinho, na última gaveta do armário de roupas do quarto
do apartamento da família, até ser descoberta (também o gato, que se perdeu), é
claro, a permissividade é sempre um movimento de recompor a liberdade e de
encontrar um esconderijo.
#moniquefranco, madrugada fria no Rio de
Janeiro, mais leve de pertences, sempre.
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